Dia da Baixada Fluminense: a lei que “não pegou”

Apesar da legislação prever atividades nas escolas, professores e alunos dizem que não há aplicação

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Guia de Pacobaíba, em Magé, é símbolo do Dia da Baixada. Foto: Marcos Lamoreux / Site da Baixada.

Guia de Pacobaíba, em Magé, é símbolo do Dia da Baixada. Foto: Marcos Lamoreux / Site da Baixada.

Este texto foi publicado originalmente em 31/5/2016 e foi referenciado pela Wikipedia no artigo oficial sobre a Baixada Fluminense.

Um mês depois do Dia da Baixada Fluminense, celebrado em 30 de abril, como se avaliaria a extensão de sua repercussão e impactos? Após catorze anos da sanção da Lei Estadual nº 3.822, que decretava a instituição e comemoração desta data, pouco ainda é o conhecimento da população da própria região quanto a sua existência, e sua aplicabilidade, questionável.

A legislação prevê o envolvimento direto da rede estadual de ensino, com o desenvolvimento de atividades pedagógicas nas unidades localizadas na Baixada Fluminense a fim de promover o conhecimento da história e cultura local e, por conseguinte, sua valorização. No entanto, sua execução permanece sob suspeita; enquanto movimentos culturais procuram impulsionar suas ações dando visibilidade à data, o papel do Estado e sua atuação nas escolas, segundo professores e alunos, não demonstram a mesma progressão.

O contexto de criação da Lei nº 3.822

A Lei 3.822 foi proposta em 2001 pelos deputados Manuel Rosa, Alessandro Calazans, Artur Messias, Dica, Andreia Zito, José Távora e Chico Alencar – o único de origem de fora da Baixada Fluminense –, e sancionada em 2002 pela governadora Benedita da Silva, adquirindo redação atualizada com a Lei 5.087/2007. Entretanto, a ideia do projeto surgiu a partir de um encontro de agentes culturais realizado na Faculdade de Educação da Baixada Fluminense – FEBF/UERJ, em Duque de Caxias, em 2000. Considerando a ineficácia das tratativas políticas em andamento até então e a necessidade de preservar, promover e celebrar a cultura e a história local, esse movimento reuniu representantes de diferentes setores na formulação de propostas em resposta aos problemas da região e às perspectivas vislumbradas para o futuro, sob a Coordenação do PINBA (Programa Integrado de Pesquisas e Cooperação Técnica na Baixada Fluminense) e do IPAHB (Instituto de Pesquisas e Análises Históricas e de Ciências Sociais da Baixada Fluminense). O resultado foi a Carta Cultural da Baixada Fluminense, em que constava, entre outras, a sugestão da criação do Dia da Baixada Fluminense e sua comemoração em 30 de abril.

A data faz referência à inauguração, em 30 de abril de 1854, da primeira ferrovia brasileira, que ligava o porto de Mauá – Estação da Guia de Pacopaíba, em Magé – à região de Fragoso. A construção marcou a história da Baixada Fluminense, garantindo-lhe espaço expressivo no cenário nacional com o trânsito de mercadorias, em especial, e impulsionando a ocupação urbana local.

A escolha, portanto, relembra a vastidão do cenário histórico-cultural da Baixada e sua relevância na história do Rio de Janeiro e do Brasil. A memória da região, porém, parece ter, de certa forma, eclipsado essa herança e valores simbólicos, em um processo de recalque que corroborou para a prevalência de um imaginário empobrecido. A instituição da data vai de encontro a esta problemática e às demandas atuais, contribuindo para a ressignificação local e valorização do forte movimento cultural que incendeia a região. Um símbolo da virada conceitual desejada e necessária.

O propósito da lei, que incluiu a proposta da carta em sua justificativa, atravessa, portanto, um caráter coletivo e social, e toma como uma de suas diretrizes o envolvimento do setor de educação. Em seu Artigo 2º é definido que o “Dia da Baixada Fluminense será comemorado obrigatoriamente em todas as escolas da rede estadual de ensino público” (DOERJ, 2002) da região, com a especificação de que, na semana da referida data, sejam desenvolvidas nas unidades “atividades pedagógicas com as crianças, para que elas possam compreender a importância dessa região no contexto sócio-econômico e cultural do Estado do Rio de Janeiro” (DOERJ, 2007). Mas será que isso está acontecendo?

A (teórica?) aplicabilidade da lei do Dia da Baixada Fluminense

No Brasil, a legislação parece se inserir num campo mítico onde sua validação dependerá de fatores não só jurídicos e executivos, mas de consensos sociais, interesses políticos e, há quem diga, sorte, que justifiquem ela “pegar” ou “não pegar”. Conversas com profissionais da rede municipal de ensino, alunos e membros do campo cultural da Baixada demonstram que, neste caso, a lei “não pegou”. Apesar de quase debutante, a lei não encontra a devida repercussão e permanece desconhecida plena ou parcialmente no ambiente em que se faz obrigatória sua inserção: a escola.

Segundo Marta Moraes, integrante da coordenação do Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Rio de Janeiro (SEPE-RJ), “essa data não tem nenhum tratamento pedagógico nas escolas”. A afirmação ressoa na fala de docentes e discentes.

Trabalhando atualmente em uma unidade estadual na cidade do Rio de Janeiro, o professor de história, Lourival, relata que nos treze anos em que atuou em Duque de Caxias – intercalando com a função de lecionar, os cargos de diretor adjunto e secretário escolar – não houve orientação para a introdução do tema conforme determinação da lei. De forma independente, foram realizados trabalhos pontuais restritos aos bairros próximos da escola, que procuravam dar conta da sua história, origem, povoamento, urbanização, cultura e saúde. “Houve pesquisa de campo onde os alunos entrevistavam os moradores mais antigos, resgatando assim a história e casos do bairro. Esses trabalhos não foram realizados em função da lei em questão. Houve total apoio e participação da equipe diretiva e pedagógica”, conta o professor.

Ele ressalta a necessidade de que as atividades que atendem a esta legislação estejam inseridas no PPP – Projeto Político Pedagógico – da unidade e aponta a importância do cumprimento da lei para o resgate histórico-cultural da região: “a Baixada Fluminense sempre foi uma região estigmatizada pela pobreza e violência. A lei vem resgatar a autoestima, cultura e a História da região”. Entretanto, “como muitas leis, essa é mais uma que não pegou. Principalmente porque não há o envolvimento do poder público em apoiar e promover as atividades que a Lei propõe”, afirma Lourival.

Para a coordenadora do SEPE-RJ, Marta, “não adianta ter legislação sem o envolvimento de toda a comunidade escolar. Esse é um debate que precisa ser feito”.

E os estudantes estão dispostos a contribuir para esse debate. Aluno do Colégio Estadual Aydano de Almeida, em Nilópolis, desde o ano passado, Marcos Paulo Dantas disse que nunca participou ou soube de alguma atividade no âmbito da lei em sua escola e destaca a importância de se conhecer mais a região e valorizar os movimentos culturais locais: “muita gente dá mais importância lá para o Centro do Rio, para a Zona Sul… Pão de Açúcar, Corcovado, etc, e esquece de onde mora, esquece da Baixada; a (aplicação da) lei seria importante para o pessoal valorizar e saber das coisas boas que há na Baixada”. Ele destaca ainda a falta de divulgação das ações promovidas na região a fim de valorizar a cultura local, exemplificando atividades como a Batalha da Délio e a Roda Cultural da Praça do Skate, ambos em São João de Meriti.

O rapper Inbute, Matheus Figueiredo, que hoje enriquece a cena rap na Baixada Fluminense, conheceu o Dia da Baixada pela própria vivência no meio cultural. Ele foi aluno do Colégio Estadual Governador Roberto Silveira, em São João de Meriti, e diz que lá também não houve qualquer ação em prol da execução da lei. Para ele, os jovens não aprendem sobre seu lugar de origem e tampouco sobre as personalidades reveladas na região; a lei “seria importante para saberem que a Baixada está no mapa”, e assim lembrar a todos das necessidades locais e gerar maior visibilidade à cultura local. Se pudesse contribuir para a disseminação do conhecimento sobre o próprio território, Inbute relata que “gostaria de mostrar a cena musical independente da Baixada Fluminense, todos os músicos, desde as rodas culturais aos eventos das bandas independentes, toda essa galera boa”.

Já a estudante Beatriz Estefan passou por três unidades da rede estadual sem saber da existência da lei. Hoje no CIEP Mário Lima, em São João de Meriti também, ela conta que em nenhuma das escolas o tema foi apresentado e trabalhado e faz coro com os demais estudantes sobre a perda da oportunidade de conhecer melhor a área onde vive, tão criticada. Seu parceiro de turma, Matheus Farias, reforça suas colocações e realça o desejo de conhecer a origem da Baixada Fluminense: “eu gostaria de contar toda a história da Baixada, ver e mostrar fotos de como era antigamente, gostaria de ensinar tudo o que eu sei/saberia sobre a minha região”.

Embora a legislação se refira à obrigatoriedade de comemoração do Dia da Baixada Fluminense em escolas da rede estadual, professores da rede privada também esperam contribuir para que a lei se torne conhecida e suas propostas desenvolvidas, apesar de reconhecerem a inexistência de orientações neste sentido. A professora de história, Tatiana Marques, que há oito anos trabalha na mesma instituição e possui dez de carreira, afirma que não conhecia a data comemorativa e pretende desenvolver projetos com seus alunos, que se enquadram no objetivo da lei. “Nós precisamos mostrar aos nossos alunos a importância histórica que a Baixada Fluminense tem, as riquezas que possui”, declara Tatiana.

Procurada para esclarecimentos quanto às declarações dos entrevistados, a Secretaria de Estado de Educação informou que “orienta as unidades escolares, localizadas na Baixada Fluminense, a desenvolverem atividades pedagógicas com os alunos, para que estes possam compreender a importância da região no contexto socioeconômico e cultural do Estado do Rio de Janeiro, em consonância com a lei Nº 3.822, de 02/05/2002. A Seeduc esclarece que os conteúdos são trabalhados, a partir de atividades autorreguladas, que são planos de estudos da disciplina de História que devem ser acompanhados pelos coordenadores pedagógicos, professores articuladores e direção escolar”. Ao ser questionada quanto ao funcionamento prático desta orientação, o tipo de atividade proposta e o acompanhamento de sua aplicação, a secretaria não se manifestou.

Se no quesito educação pública a lei parece ter sido ignorada, na esfera cultural ela tem conquistado maiores proporções a cada ano, com a articulação de uma sólida rede cultural em favor de sua disseminação e apropriação pelas mais diversas frentes. E essa rede deve permanecer “empurrando” os responsáveis pela execução plena da lei, celebrando os valores históricos, culturais e sociais da região, discutindo seus problemas e propondo soluções.

Opinião

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