“Eu não pareço com você” – Crônicas da BXD cruel

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The Life of Baixada em Shangrilá, Belford Roxo (Foto: Giovanna Ribeiro)

Em dia de jogo do Flamengo, a sabedoria ancestral de minha família sempre alertou: se o dia está bonito, o Flamengo ganha. Se o tempo fechar, ele perde. Naquela tarde de 30 de abril de 2023, um domingo, em Duque de Caxias o tempo abriu. Nos anos 1960, disseminou-se um dito popular acerca da cidade de Caxias. Lá, seria a terra onde “galinha cisca para frente”. Forma didática de exemplificar o quanto este território seria marcado por aquilo que é estranho, diferente e desviante — naquela tarde, o Flamengo perdeu para o Botafogo por 2×0.

No Bar do Chileno, bairro Parque Lafaiete, há cerca de 3 km da Praça do Pacificador, Centro de Caxias, flamenguistas pais de família se aglomeravam em frente à TV pequena, suspensa. Enquanto jovens transitavam carregando instrumentos, baldes de cerveja e produzindo um evento com cara de movimento. Além daquele 30 de abril ser um domingo de tempo bom, de jogo do Flamengo, e de véspera de feriado, era Dia da Baixada.

O Dia da Baixada foi instituído em 2002. A data é uma homenagem à primeira ferrovia do Brasil, construída pelo Barão de Mauá e inaugurada em 30 de abril de 1854. A estrada de ferro ligava o centro do Rio de Janeiro a Magé. A homenagem não deixa de ser uma contradição. O empreendimento estratégico do Barão de Mauá viria a colaborar diretamente para a decadência da pacata Baixada Fluminense do século XIX, além de impactar severamente a economia e até o ecossistema local. Isso muito antes da construção da Via Dutra, antiga Rio-São Paulo nos anos 1950, ter transformado definitivamente a BF em uma região de passagem, — nunca permanência — de saída de pessoas e cargas.

Em todas as cidades que compõem a região — sendo elas, Belford Roxo, Duque de Caxias, Guapimirim, Itaguaí, Japeri, Magé, Mesquita, Nilópolis, Nova Iguaçu, Paracambi, Queimados, São João de Meriti e Seropédica — durante o 30 de abril, tradicionalmente, coletivos baixadenses se organizam para promover discussões, e sobretudo, lazer. A data, para muitos ativistas da BXD, é um ato político. Natö é um deles. Produtor cultural, músico e professor de história, ele enxergou em Caxias, cidade onde nasceu e morou a vida inteira, uma potência a ser desenvolvida.

Desde 2017, o Movimento da Roda realiza eventos como o Mov.Rua, que, naquele domingo, fechava a rua em frente ao Bar do Chileno. Formado em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ, em Seropédica), Natö, um dos produtores do evento, observa a ironia de se conhecer através do outro, e divide essa sensação com os amigos que fez nesse território. Daí nasce uma forma de organização coletiva.

Desde 2017, o Movimento da Roda realiza eventos como o Mov.Rua. (Foto: Divulgação/Emanuel Sant)

Desde 2017, o Movimento da Roda realiza eventos como o Mov.Rua. (Foto: Divulgação/Emanuel Sant)

Entre diversas atrações locais e gratuitas, uma sessão de cinema chamava a atenção na programação do evento. Diretora do documentário ‘Existe Amor na BXD‘, exibido naquele Dia da Baixada, Marina Maux, de São João de Meriti, começou a perceber que existia um discurso sobre a Baixada Fluminense que não tinha a ver com o que ela vivia. Ao ser perguntada sobre o porquê de fazer cinema, ela responde: “Acho que para além da resposta sensível, da realização, existe a resposta objetiva: porque me deram oportunidade. Antes eu não pensava que poderia fazer cinema”. A oportunidade veio do projeto social Encontrarte, que oferece formação gratuita em cinema, em Nova Iguaçu.

A expansão dos centros culturais se deu no final dos anos 1980 e início da década de 1990, impulsionada por movimentos sociais atuantes na região, sobretudo as associações de moradores. Relacionando com o contexto nacional, a abertura política pós ditadura militar foi decisiva para essa onda crescente de iniciativas socioculturais. Através das casas de cultura, buscou-se incentivar a produção de imagens positivas acerca da Baixada Fluminense como um resgate e um contraponto à construção narrativa de barbárie estabelecida na opinião pública nas décadas anteriores.

A ideia de produzir um documentário que falasse de amor em um território marcado pela violência, com pouquíssimas salas de cinema ou mesmo longe das escolas de audiovisual tradicionais, surge da relação de acolhimento que Marina sempre sentiu, mas que existia em contradição com a sensação de dúvida sobre esse pertencimento. “O sinônimo de sucesso para mim era poder superar isso [a Baixada]” desabafa. Entretanto, Marina hoje acredita que não há o que superar.

O financiamento para a produção do filme foi todo coletivo, além de apoios pontuais de comerciantes locais. A venda de produtos estilizados com a “marca”, além de colaborar com o orçamento do documentário, espalhou pela cidade, seja em bolsas, camisas ou bonés, uma ideia que pegou. Chegou ao conhecimento da equipe uma tatuagem feita por um baixadense anônimo, ostentando em sua pele a frase título do filme: “Existe Amor na BXD”.

Alguns muros da região também ganharam “lambes”: cartazes que são fixados em espaços urbanos, a partir de uma cola artesanal. A parceria com outro coletivo, o BXD Lambe, que se apresenta como o primeiro coletivo de lambe-lambe da Baixada Fluminense, rendeu esse material, que é também um personagem do filme.

Existe Amor na BXD. Foto: Divulgação/Emanuel Sant

Codiretor do documentário, Guilherme Leopoldo, também de São João de Meriti, percebia que algumas pessoas não faziam ideia do que era a Baixada.“E as pessoas moram aqui há 50 anos, a vida inteira”, observa. Para os cineastas, fazer esse filme também era uma forma de, eles mesmos, compreenderem a construção de suas identidades a partir desse território. A estreia do documentário havia se dado no Estação Net Rio, em Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro, dias antes. Mas era naquela primeira exibição “dentro de casa” que a equipe do filme buscava as reações mais importantes acerca da obra.

Guilherme, que vem da cena hip hop, acredita que o maior legado que o filme pode deixar é ser parte de um movimento que começa na produção artística, atravessa espaços produzidos por atores sociais como o Natö, e se encontra na rua, onde a existência enquanto moradores da BXD se dá, de fato, diariamente.

Malandro da Baixada em terra estrangeira

A Banda Gente, composta majoritariamente por músicos negros e formada em Mesquita, existe desde 2011. Com a sonoridade fortemente influenciada por grupos como O Rappa, a história da banda se encontra intrinsecamente conectada à Baixada Fluminense — assim como o próprio O Rappa, ligado especialmente a Belford Roxo, onde a cena reggae era forte durante os anos 1980.

Iolly Amancio. Foto: Giovanna Ribeiro

Os quatro integrantes da banda, de “periferias” do Rio de Janeiro (assim, no plural, por serem diversas), passavam o som e se preparavam para o show no evento “Memória da Diáspora”, na Audio Rebel, em Botafogo. Para acalmar os nervos, a palavra de ordem era “segura na mão de Deus e vai”, entoado de improviso, antes do público chegar ao espaço. A noite também contava com uma convidada especial, a cantora Doralyce.

Às vésperas do Dia Mundial da África, A Banda Gente iniciou a apresentação no espaço de música alternativa da Zona Sul. Iolly Amancio, vocalista e produtora cultural, já no palco, relembrava os casos de racismo da semana e enfatizava que estávamos no mês dos trabalhadores. Era 24 de maio.

Wallace Cruz, músico e poeta de trem, ao ser perguntado sobre o que aquele show significava para sua carreira e para a banda, não perdeu a oportunidade de dizer que estar ali representava “duas horas de viagem para chegar”, arrancando um riso geral. Dedicando-se à música e à literatura, Wallace acredita que o periférico também é um pensador. E que, embora não esteja nos espaços de poder, é também “um indivíduo que consegue pensar a sua realidade e performar artisticamente”.

Para Jessica Nepomuceno, ocupar aquele espaço despertava sentimentos agridoces, justamente por estar ali sob a proposta de fazer arte. “Nós somos vistos com outros olhos. A última coisa que vão pensar é que a gente é artista”, afirma. Fazendo coro com a colega de banda, o quarto integrante, Jonathan Panta, relembra como os desafios do dia a dia acabam influindo nas composições, seja a distância, o trânsito ou as contradições de periferias tão complexas.

Ao fim de cada reflexão, todos os músicos sempre retornam seu olhar para Iolly. A vocalista reivindica em sua arte não somente seu lugar no mundo, mas um espaço no mundo para o seu território existir. Ela não separa uma coisa da outra. “Eu não só sou da Baixada, eu me pareço Baixada e é lá que eu quero ficar.” Negar a BXD, para a cantora, seria como negar a si mesma, e sua identidade. “Eu quero que a minha arte possa impactar positivamente o lugar que eu estou e quero continuar lá e ver esse impacto tomando espaço. Eu não quero ficar rica e ir embora” decreta.

“A gente realmente narra e retrata aquilo que a gente vive. É o assalto na rua, o linchamento, o trânsito, o transporte público. Sobre o terreiro, sobre a rua, sobre a favela, sobre a Baixada.”
– Iolly Amancio

Mas na delícia de ser quem se é, existe uma dor pelo mesmo motivo. Mariana Belize, de São João de Meriti, escolheu Belford Roxo movida por um amor de adolescência. A escritora e doutoranda em Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) fez parte do coletivo Fulanas de Tal, de Nova Iguaçu, e hoje compõe o coletivo Pó de Poesia, no Centro Cultural Donana, em Belford Roxo. Ela equilibra suas demandas enquanto doutoranda com o projeto Olho de Belize, um podcast de crítica literária, que, segundo ela, surgiu como uma iniciativa de divulgar os trabalhos de autores e artistas da BXD, mas que agora se propõe a analisar obras de autores que também estão nas outras “Baixadas do Brasil”.

Mariana Belize. Foto: Giovanna Ribeiro

Mariana está se preparando para lançar seu primeiro livro de poesia: Nada de ti me devora, pela editora Urutau. Filha de Iansã, ela declara sem medo sua percepção dos “outros” da Zona Sul: “feios, chatos e não morrem nunca”. E resgata sua Orixá para ilustrar como, assim como Iansã, ela também sempre está pronta para a guerra. Segundo Mariana, é impossível pensar na Baixada sem pensar em conflito.

A acadêmica das Letras confessa que, assim como nas muitas histórias de indivíduos da Baixada Fluminense, ela também não se reconhecia nesse espaço. E somente no termo “síndrome de vira-lata” Mariana encontra o paralelo ideal para explicar o porquê de ter começado a estudar literatura alemã e Goethe na graduação em Nova Iguaçu, bem longe da Alemanha. Ela acredita ser sintomático porque enxergava a literatura alemã como uma fuga de sua própria realidade baixadense, que a separava de quem ela queria ser. Só a partir da literatura brasileira, e do trabalho com cultura na BF, a escritora percebeu que existe um poder em saber de onde se vem. E de que lugar vem o seu discurso.

Mariana recorre não só à sua fé — que a faz definir território também como um bem espiritual — mas também à psicanálise. Ela explica que o objeto de amor também é capaz de gerar ódio, sob a máxima de que o contrário do amor é a indiferença. Considerando ser impossível sentir indiferença pelo lugar em que ela acorda, dorme, se alimenta e existe todos os dias, a raiva e a paixão muitas vezes se confundem em uma relação que a escritora ilustra: “eu fui entender fazendo análise que o meu ódio pela Baixada era o meu amor retorcido, porque eu queria uma Baixada melhor”.

Terminar o doutorado e ir embora, para Mariana, não é uma opção. Desafiando a lógica do “sonho americano”, a partida não enche seus olhos assim como para Iolly Amancio. Ela encara a própria formação como uma posição de resistência e uma possibilidade de retorno e entrega para os companheiros da Baixada.

Não é uma decisão fácil. Sustentar o desejo é também suportá-lo. Sobre o processo de produção do documentário que fala sobre amor e Baixada, o codiretor Guilherme Leopoldo já estava preparado para os perrengues porque fazer um filme sobre a Baixada, diz ele, “não tinha como ser um mar de rosas”. Longe da romantização das dificuldades, sua parceira de set Marina Maux confessa um eterno estado de dúvida, ao percorrer os caminhos que conectam sua casa ao resto do mundo: “Será que eu consigo estar nesse lugar? Será que eu devo estar nesse lugar? Eu acho que isso faz com que a gente tenha sempre muita vontade de se colocar à prova e ir além”.

“Você pode escrever, hein? Você pode sonhar, falar com uma dona de casa: Ó, você pode escrever uma carta, um documento, um diário sobre a sua vida. Você pode dar a sua versão da história.”
— Mariana Belize

Sobre a relação com a Academia e a periferia, Mariana Belize é direta: “Como você conquista uma pessoa? Mostrando seu currículo Lattes ou falando da sua paixão?” E a paixão talvez seja o sentimento que, indiretamente, conecta todos os personagens que, conscientes de suas condições enquanto sujeitos da Baixada Fluminense, recusam diariamente a máxima de que não se pode sonhar. Para ela, ousar desenvolver sua própria narrativa é tirar o poder da mão da mídia hegemônica, que explora a violência, o sangue e a dor.

Ao relembrar um funk antigo, cujo verso é conhecido de todos os trabalhadores de cultura da Baixada Fluminense – “Baixada Cruel, os Sinistros são de Bel” -, a escritora ainda desenvolve um pequeno ensaio: “O sinistro é o que é esquerdo e o que é desviante. Então esses sinistros de Bel são essa Belford Roxo dos desviados, sinistros, os da mão esquerda”.

E na mão esquerda do Rio de Janeiro, na mão esquerda do mundo, a cantora Iolly Amancio também atribui um caráter ideológico para sustentar sua posição. Para ela, o capitalismo é sobre quem vence e sobre quem perde. Então, nessa narrativa, os baixadenses seriam os perdedores. Mas a cantora completa: “quando eu olho para o meu entorno, eu não vejo essa derrota. Eu vejo um povo que tá se organizando”. Um perigo.

*Versão adaptada do Projeto Experimental em Jornalismo realizado por Giovanna Ribeiro, para a obtenção do diploma em Jornalismo na Universidade Federal Fluminense. Giovanna é de Belford Roxo.

Opinião

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