Porque a vida não basta, Ricardo Rodrigues é escritor, poeta e cineasta.

Livros não morrem

Um conto rimado de Ricardo Rodrigues

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Minha mãe era muito namoradeira. Vô Pereira, vivia com a sua peixeira de tocaia num pé de bananeira, esperando minha tia Soraia escapulir sorrateira, mas era a minha mãe, cheia de malandragem e encanto, que fugia por um outro canto, desaparecendo no levantar da poeira. Tia Soraia morreu solteira. Já minha genitora, no quesito paixão, é professora! Casou, descasou, viuvou muitas vezes na sua vida inteira. E foi num desses rodízios de casamentos que fomos morar num minúsculo apartamento do Seu Nelon, na Rua do Livramento.

Seu Nelon, sempre brincava quando apresentava o seu cartão de visita: “O dono do cartório fugiu do sanatório ou tava cheio de birita! Tirou o ésse do meu Nelson e tem sempre alguém que também se esquece e pronuncia o meu nome errado. Já fiquei encarcerado por um Nelson fugitivo de retrato falado bem parecido comigo! Malditos os donos de cartório que comem letras e os que não desenham retratos falados fazendo caretas!”.

Para mim, ele foi o companheiro mais divertido que a minha mãe conviveu. Um mês depois que meu pai morreu, antes de sermos despejados, logo fomos acomodados no seu apertamento, como ele mesmo dizia. Seu Nelon era representante de uma fábrica de cimentos e conheceu minha mãe no balcão da padaria, onde consumia uma média e um pão na chapa todo santo dia. Ela zombava, dizendo que Seu Nelon cheirava a cimento e ele, sempre de bom humor, dizia que ela, o seu grande amor, tinha a fragrância de café. Mas o café, se não bebido, esfria e o amor não recebido, não dura à revelia.

Minha mãe livrou-se rápido da Rua do Livramento. Foi a desculpa mais fajuta que ouvi dela até o momento. “Não é porque é um vendedor de cimento, que tem que ser meloso, tão grudento!”. A piada era de mal gosto e Seu Nelon não merecia tamanho desgosto. Ela foi embora para Pirapora com uma tal de Isadora de ascendente em leão. Disse em sua partida que demorou, mas encontrou o amor da sua vida e que tinha que obedecer o seu coração. Eu, me tornei desobediente, ela seguiu em frente e fiquei com o Seu Nelon.

Seu Nelon e eu nos adotamos como pai e filho. Passei pro terceiro ano e ele, vendedor de fitilho. Fizemos um trato de pela manhã tomarmos apenas chá com pão de milho e queijo mineiro, porque café passou a não ter mais bom cheiro e que pão na chapa, não tem graça e que seria assim, todo o dia, o ano inteiro.

Para mim, ele foi o pai mais esquisito que um filho poderia ter. Sempre dizia que não tinha religião, mas a sua oração era o hábito de ler. Em cada canto de nosso lar era impossível não esbarrar com livros empilhados e esparramados. No banheiro, dentro da banheira, coleção de Monteiro Lobato e entre os temperos, espalhados na bancada da cozinha, de tudo tinha da literatura brasileira. É que Seu Nelon tinha aversão a tudo que vinha do estrangeiro. Era um nacionalista convicto! Bem, eu avisei que ele era esquisito. Tudo bem que temos os Veríssimos, Quintana, Drummond e Antônio Maria, mas não tem como desprezar Neruda, Proust, Pessoa e Shakespeare! No tanque de roupas, tinha Machado de Assis e José de Alencar, e ao mesmo tempo, e jamais por acaso, era fácil encontrar em cima da geladeira, a poesia de Cacaso, Manoel de Barros e do Bandeira. Noutro dia, me confidenciou que, quando era menino, só lia jornais, por causa da coluna do Fernando Sabino e quando seus pobres pais compravam ovos na feira. E que seu maior sonho não era ser astronauta, jogador de futebol, médico ou engenheiro. Era vender ovos na feira ou ser jornaleiro para ler jornais todo o dia, o ano inteiro.

Minha mãe ficou anos sem dar sinal de vida e naquele apartamento ficou totalmente esquecida. Nenhuma fotozinha três por quatro para figurar. Muitas vezes nem lembrava mais de seu rosto. Nem titubeava em comentar com Seu Nelon, tamanho foi seu desgosto. Só sei que nunca mais o vi com outra mulher. Um outro dia desses quaisquer, altas horas da madrugada, vi Seu Nelon, luz apagada, tomando um café. Entre um gole e outro, reclamava e chorava um pouco, balbuciando palavras que não davam para escutar e parecia que só os escritores dos livros que ali habitavam é que conseguiriam lhe consolar.

Seu Nelon sempre repetia que mesmo se o céu cair e subir o inferno, podem morrer os escritores, porém os livros, são eternos. Mergulhou ainda mais em suas dores quando me tornei bibliotecário numa escola em Araruama. Só voltava a vê-lo no fim de semana. Cada vez mais solitário, Seu Nelon resolveu organizar a sua vida, colocando em ordem todos os livros do seu apartamento. Parecia mesmo uma despedida, um desolamento. Sempre quis os livros ganhando espaço por todo o canto, como se, em cada passo, tropeçássemos em seus encantos. Achei estranho vendo todos os cômodos arrumados. Parecia que aquele lugar nem era habitado! Vendeu os sofás, a mesa onde tomávamos nossos chás e a televisão, quebrou e nem consertou, foi direto pro lixão. Arrumou seus livros em uma estante feita de caixotes que arrumou com um feirante, que vendia figos frescos e em potes.

Para mim, tudo ficou com cheiro de figo naquele cômodo. Sejam os livros novos ou os mais antigos, todos ganharam cheiro de figo.  Seu Nelon dizia que “não é um incômodo, nem ligo!”. Eu também não, seu Nelon, hoje em dia adoro figo.

Minha mãe apareceu do nada na porta da minha casa em Araruama. Solteira, sem eira nem beira, querendo um aconchego, um chamego, um recomeço, uma cama. Não fiz drama, tudo na vida tem um preço. Não dei o troco e não paguei pra ver. Quero apenas escrever uma história boa, que um dia qualquer pessoa possa ler.

Seu Nelon ficou ainda mais sorumbático quando soube que a escola que trabalho foi vendida para ser construída uma fábrica de baralhos. Ou talvez petecas. Ganhei de indenização todos os livros da biblioteca. Escutei dizer que seriam descartados por uma indústria de papelão. Não sei se isso foi bom ou ruim, preciso sobreviver, só sei que peguei tudo pra mim porque os livros não podem morrer. Não podem morrer assim.

Para mim, Seu Nelon fez a sua despedida mais bem escrita que um personagem poderia ter. O que eu vi e senti nunca mais irei esquecer. Seu Nelon, deitado no chão, uma pilha de livros fazendo de travesseiro e outro livro na mão, “Viva o povo brasileiro”, camuflando a feição que parecia dormir.  João Ubaldo Ribeiro jamais imaginaria que seu livro marcou alguém na hora de partir.

Minha mãe e eu montamos um sebo virtual no apartamento do Seu Nelon. Apesar do avanço da tecnologia mundial, os livros permanecem vivos, não perderam espaço não! Às vezes abrimos para visitação, tem livros raros, livros autografados, livros baratos, livros caros, livros para todos os tipos de opinião, livros pouco usados e tem até livro rasgado que vale um dinheirão. Vendemos para todos os cantos do planeta. Dizem que a caneta vai entrar em extinção, mas os livros não. Mesmo se o céu cair e subir o inferno, podem morrer os escritores, porém os livros, são eternos.

Opinião

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