Porque a vida não basta, Ricardo Rodrigues é escritor, poeta e cineasta.

O funeral do Pezão

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O funeral do Pezão

Quem vê hoje aquele homem na cadeira de rodas saindo de seu próprio funeral, não faz a menor idéia de quanta alegria ele já deu ao povo em um campo de futebol. Me corta o coração ver o Pezão assim cabisbaixo, respiração ofegante, barba por fazer e a sua cor amarelada, que de nada lembra o Pezão de antes. Não tem repórter, nem amigos, nem as mulheres que tanto disputavam a sua fama e desfrutaram da sua grana. Só a Iolanda que empurra a cadeira de rodas, sua filha mais nova que nascera na Holanda. Sua mãe era modelo, disseram que traiu Pezão com o porteiro e daí começou o seu derradeiro.

Pezão ficara perdidamente louco pela traição. Abandonou os gramados, rescindiu um bom contrato e amargou de fato, o peso de uma paixão. Voltou pra Tinguá, de onde saiu pra se aventurar pelos quatro cantos do país. Ali ele havia sido feliz.

Quem vê aquele homem cabeça balançando com o trepidar do chão numa cadeira de rodas, nem ousa imaginar, que em qualquer campo de Tinguá, tinha lugar pra ele jogar. Fazia embaixadinhas por horas sem fim, sem deixar a bola cair. Eu mesmo perdi várias apostas a cada hora que Pezão fazia mais e mais embaixadas. E nada fazia a bola cair.

Até que um dia viajou horas a fio, foi treinar no Canto do Rio, arrebentou, fez gol de todo jeito, de calcanhar, de letra e até de peito, ninguém conseguia lhe marcar. Foi titular de imediato, seu time ganhou do Flamengo, do Botafogo, do Fluminense e do Vasco! Todos os jornais exibiam reportagens sobre o Pezão, que ganhou o codinome de carrasco! Saiu do anonimato para virar artilheiro do campeonato!

Quem vê aquele homem triste e esmirrado sendo empurrado numa cadeira de rodas, não faz a menor idéia de quantos carros ele já teve a sua disposição. Cada carrão! Só quando foi pro Timão, chegaram cinco carros para os parentes daqui! Eu morria de rir! Falaram que um de seus carros até falava! E que tinha um outro, cor de ouro, que sozinho andava! Pezão comprou todos os carros que queria, e agora que infeliz ironia, se quiser andar, só com duas rodas e empurrado pela filha.

Pezão ganhou esse apelido por causa de seu pé grande, nem precisava muita explicação. Poucos sabem que seu nome é Sebastião, que seu pai fazia pão e que sua mãe morreu quando ele era bem pequeno, num dia de sereno, parou seu coração. Mas esse seu pé lhe deu muita sorte. Além de um chute muito forte, pelo seu porte desengonçado, caía sempre pelos lados e só lhe tiravam a bola derrubado. Coitado, era muito machucado, mas ele não se fazia de rogado, no jogo seguinte, podia vir mais de vinte, que seu pé parecia viciado.

Quem vê aquele homem cabisbaixo saindo de seu próprio funeral conduzido pela filha, nem imagina que todo carnaval só passava em sua ilha. Comprou em Angra depois de jogar dois anos na Holanda. É… Pezão foi um dos poucos que abriram portas e se deram bem na Europa naquela década de cinquenta. Hoje tá tudo fácil, o Brasil é penta… Ninguém agüenta mais jogador brasileiro chegar no estrangeiro pra jogar na quarta divisão! Naquela época, não! Pra sair do país tinha que ser craque! Parece que foi outro dia, todos os jornais em destaque: Pezão é só alegria! Vai brilhar no Ájax!

Quem vê aquele homem quase moribundo, sendo empurrado por Iolanda, nem imagina, que ele viajou por meio mundo, cheio de grana. Até na China, Pezão fez gol.

Foi a Moscou falou com o Rei. Sei também que esteve em Belém, e chorou quando pisou onde Jesus passou. No auge da fama, ao lado do Dalai Lama, falou que Buda é uma palavra profana. Na Inglaterra conheceu a rainha e disse que naquela terra qualquer besteirinha custa os olhos da cara! No Vaticano viu o Papa, rezando uma missa. E que na Itália, se a memória não me falha, comeu uma pizza com o Marlon Brando. Pezão tinha foto disso tudo, hoje quase vive mudo, esquecido aqui nesse fim-de-mundo.

E quando Pezão pra seleção foi convocado? Foi feriado em Tinguá! Um dia inteiro de festão! O torneio foi no Canadá e o Brasil se tornou campeão! A final foi com o Japão, que no futebol não tinha tradição. Foi três a zero, só gol do Pezão. E como capitão ergueu a taça, que aqui nesta praça ficou muito tempo em exposição.

Quem vê aquele homem mal arrumado, barba por fazer, olhar mal assombrado, e sem ter com que sobreviver, nem faz idéia, de que a sua primeira mulher, Andréia, morreu sem poder lhe dizer, que ele fora um ingrato, que fora embora quando esperava o quarto e que seu filhos ficariam num orfanato, pois não tinha o que lhes dar de comer.

Pezão teve mulheres por todo canto. Mulheres felizes, mulheres oportunistas, mulheres em pranto. Mulher de todas as formas, idiomas e cores. Todas seus grandes amores! Disputavam a vez no coração do grande jogador. Mas o que ele vivia não seria nunca um amor, senão alguma mulher estaria naquele momento, sem contratempo, aliviando a sua dor.

Filhos ele teve de montão. Reprodutor nato, esse Pezão! O carrasco dos goleiros, fez filhos pelo planeta inteiro, pelos jogos do Ájax ou da Seleção. A maioria ele nem conheceu. Outros, não reconheceu como seu, e de alguns, se arrependeu. Dizia que não servia para ser pai, e além do mais, não acreditava em nenhuma mulher que conviveu.

Ainda lhe restou alguma sorte, agora a beira da morte, Iolanda lhe aparecer, vinda da Holanda só para lhe conhecer. Descobriu que Pezão morava num asilo, e como para a sua mãe havia prometido, tinha um segredo a lhe dizer: o porteiro havia mentido, recebeu dinheiro, do goleiro de um time que disputaria a final da competição. Pezão acreditou na traição e largou tudo antes da decisão.

Torrou tudo o que ganhou em jogatinas. Saiu no jornal que fora pego com cocaína. A Interpol o prendeu numa orgia com meninas. O que o futebol lhe deu, seu fracasso o desatina. Vivia bêbado largado nas esquinas. E quem se esquece de Deus, o diabo determina.

Quem vê aquele homem sendo empurrado numa cadeira de rodas, nem sequer desconfia que ele aparecia em revista de moda, propaganda de soda, programa de rádio, estátua em estádio… Quem vê aquele homem, sentado no esquecimento, exilado num asilo, preso em seus pensamentos, se despedindo de seu destino, não sabe que nos conhecemos desde meninos. E que a nossa amizade mesmo ele tendo saído da cidade, nunca se separou, apesar de eu ter virado um padre e ele, um jogador.

Quem vê aquele homem sendo empurrado na cadeira de rodas não vai entender nunca por que a vida sempre se renova e ao mesmo tempo se repete. Tomado pelo diabetes, no leito do hospital, véspera de Natal, Pezão me falou, que aquele mesmo pé que tanto fez gol, resolveu não mais se mexer. “Fazer o quê? Deve de ser castigo, meu amigo!” – indagou sem fé. Seu pé cansou de viver.

Passou mais alguns dias, para acabar com a agonia, autorizou o corte do seu pé. “Se Deus quiser, vamos lhe arrumar um pé postiço!”. “Mas o que é isso? Estou no fim da minha vida, só quero para o meu pé uma digna despedida. Um pedaço meu, que morre primeiro que eu!”.

Quem viu aquele homem chorando abraçado a uma caixa de sapato, não podia nunca imaginar onde terminará o fundo da sua dor. O que o fez conseguir como jogador estava sendo de vez enterrado. Só lhe restaram para o futuro, os ossos do passado.Um vácuo pelo seu corpo, um oco na alma, palmas sem mãos, uma história de realizações dentro de uma caixa de sapato. Um parto de choros e a dor nunca mais vai embora. Apesar de explodir peito afora, têm dores que voltam e acompanham para o resto da vida. A única saída é tentar desprezar a dor, mesmo sabendo que ela te acompanha seja lá onde você for.

Rezamos um Pai Nosso e uma Ave Maria e encerrei o funeral. Não há nenhum jornal, nem mulheres ou falsas amizades. Somente Pezão, Iolanda e um padre.

Quem vê aquele homem saindo do cemitério empurrado pela sua filha, nem desconfia quantos mistérios cabem numa biografia. E eu como um mero expectador da vida de meu amigo jogador, torço para que Pezão não continue esquecido num asilo, desmoronando em cacos de solidão. Torço para que Iolanda leve Pezão de volta para a Holanda, tentar reparar o mal entendido, se dizer arrependido e reviver de novo a mesma paixão.

Opinião

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