Porque a vida não basta, Ricardo Rodrigues é escritor, poeta e cineasta.

Um meritiense na fogueira – e não era noite de São João

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Um meritiense na fogueira – e não era noite de São João

Antônio José da Silva Coutinho, também conhecido como “O Judeu”, foi o mais importante dramaturgo da língua portuguesa do século XVIII. Nasceu no Brasil Colônia, em 8 de maio de 1705, no engenho de seu avô, Balthazar Coutinho, na região da Covanca, em Vila Merity, atual Cidade de São João de Meriti, Rio de Janeiro. Ainda criança, viu sua mãe, Lourença Coutinho, ser presa e levada para Portugal acusada de práticas judaizantes. Teve que imigrar com o pai e os irmãos para lá. O antissemitismo era uma prática da Igreja Católica e ser judeu, segundo as leis cristãs da época, era crime.

Suas peças modernizaram o teatro português e ganharam imensa popularidade por criticar a nobreza e a Igreja Católica usando o humor, através de fantoches, bobos da corte e bonifrates (enormes bonecos gigantes feitos com cortiça). Seus textos foram montados de maneira simples, porém com uma incrível capacidade de persuasão na sociedade. “O Judeu” fez com que a sua obra destoasse dos modelos clássicos do teatro europeu e ainda incorporou o canto como elemento primordial ao seu trabalho.

Aos 21 anos, estudando direito em Coimbra, também despontando como poeta, em 1726, foi preso junto com a sua mãe, sob a acusação de práticas judaizantes. Mesmo sob tortura, “o Judeu” só delatou uma tia falecida que o obrigava a jejuar no Dia Grande, dia de adorar a Deus. Segundo a lei do Santo Ofício, uma só delação não era o suficiente para absolvição, ainda mais de alguém já falecido. Depois de torturado, foi posto em liberdade após o juramento de se tornar um cristão novo e não cair em heresia contra as leis da Igreja Católica. Sua mãe, permaneceu presa.

“O Judeu” viveu isolado dos parentes e amigos com receio de retornar ao cárcere ou de agravar a pena de sua mãe, que continuava presa. Somente três anos depois, com a soltura dela, é que Antônio José voltou a se entrosar em seu meio social e artístico. Escreveu um libreto para uma ópera representada no casamento do príncipe José, filho de D João V. Os nobres só assistiam, até então, peças de companhias italianas, francesas e espanholas. O nome do “Judeu” estreava no Palácio Real.

“Vida do grande D. Quixote de La Mancha e do gordo Sancho Pança”, de 1733, foi a sua primeira grande peça encenada que lotou as arenas por onde passou. Utilizou de um personagem já conhecido do grande público e nele colocou a sua voz, refletindo os seus próprios pensamentos, que tanto imperou em toda a sua dramaturgia cômica.

Parecia que as gargalhadas do público saíam dos teatros lotados de Lisboa e chegavam até o castelo da realeza e aos altares da Igreja. Quando o dramaturgo faz de sua ópera, um instrumento de expor as tormentas da sociedade, recitadas em versos repletos de comicidades, era como se o próprio povo também ganhasse voz naquele momento. A censura e os inquisidores não estavam satisfeitos com aquele cenário. As demais companhias de teatro também viam no “Judeu”, um dramaturgo perigoso e invencível. A cada peça que estreava, arrastava a sociedade lusitana aos teatros para descobrirem qual a nova crítica que o dramaturgo iria desferir aos nobres e a Igreja, em forma de cantos e gargalhadas.

“O Judeu” ensaiava a ópera “Precipícios de Faetone”, em 1737, que parecia anunciar a sua própria tragédia, quando foi, novamente, denunciado ao Santo Ofício, pela escrava Leonor Gomes. Ela afirmava que o dramaturgo era circuncidado e que lia o Torá diariamente. Camilo Castelo Branco, um dos maiores escritores portugueses e pesquisador sobre a vida do Judeu, afirma que a escrava apaixonara-se pelo dramaturgo e não fora correspondida, jurando-lhe assim, vingança.  “O Judeu” foi preso junto com a sua esposa Leonor Maria e, mais vez, com a sua mãe. A denunciante também foi presa e, tentou arrepender-se das acusações, desmentindo tudo o que dissera. Mas era tarde. Os inquisidores fizeram-na calar. A escrava apareceu morta na cadeia de forma misteriosa.

“O Judeu” permaneceu em seu cárcere praticamente inerte, prostrado e mal se alimentava. Não conseguiram arrancar-lhe nenhuma confissão. Colocaram, na mesma cela, dois prisioneiros, que seriam postos em liberdade logo a seguir, com a missão de tentar arguir testemunhos contra “o Judeu”. Eles disseram, ao bel prazer dos algozes, que Antônio José chamaram-nos para seguir a Lei de Moisés. Foi o suficiente. Até o rei, já acostumado com suas peças e preocupado com a repercussão do caso junto à plebe, tentou interceder. Mas não foi o suficiente.

De cabeça raspada, descalço e algemado, Antônio José da Silva Coutinho, “o Judeu”, em 18 de outubro de 1739, foi condenado por seus hábitos judaizantes. No rito do Auto da fé, foi amarrado a um poste, degolado e atirado às chamas da fogueira. Dom João V, os senhores inquisidores e a população curiosa assistiram ao último espetáculo do “Judeu”, desta vez sem comicidade alguma. Nessa mesma noite, aplaudia-se o final da peça “Precipícios de Faetone”, quando o filho do sol ascende para o infinito num carro repleto em chamas.

Se a vida imita a arte ou se a arte imita a vida, não sei. Neste caso, qualquer semelhança não foi uma mera coincidência. “O Judeu” virou cinzas, porém a sua história permanece acesa como os raios de sol. Até os dias atuais, seus textos continuam sendo encenados nos quatro cantos do mundo e a sua biografia é pesquisada e reverenciada como um verdadeiro mártir contra a intolerância religiosa.

Opinião

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